A sociedade do cancelamento ou a literatura como o incancelável

Autores

DOI:

https://doi.org/10.37508/rcl.2025.n54a1375

Palavras-chave:

Cancelamento, Internet, Identidade, Literatura, Devir

Resumo

Pensar a problemática do cancelamento nos convida a abrir um leque reflexivo, pois muitas pontas se juntam nesse fenômeno. A noção, punitiva desde a etimologia, foi deslocada do universo dos eventos (“cancelar uma festa”) para o das relações humanas (“cancelar uma pessoa”). A questão se liga ao processo de digitalização do mundo, pois a internet é mola e palco da lógica do cancelamento. A web provoca uma sensível redução da linguagem, o que facilita uma mentalidade vigorosa de extrema direita. Membros de grupos historicamente marginalizados sempre tiveram componentes identitários como motores de identificação e resistência, acionando-os para o convívio entre diferenças e ações transformadoras. Contudo, uma militância predominantemente online acaba por replicar práticas do novo populismo autoritário, que, por sua vez, também se aproveita da identidade, mas vaga e performaticamente, como mantra segregacionista. O resultado disso é a assunção, por pessoas mais ou menos próximas ao que se entende como esquerda, de uma ideia de superioridade moral, que rege exercícios de vigilância e anulação de diversas divergências – majoritariamente no espaço, pouquíssimo aberto ao debate, da internet, que nos propulsa a um espetáculo individualista desejoso de ganhos simbólicos (curtidas, breves elogios). Quando a prática do can celamento atinge a Literatura, tende a, além de constranger debates que podem ter lugar, ferir a igualdade que o texto literário propõe entre quem escreve e quem lê. A Literatura, com sua superação do esquema forma/conteúdo, aposta num devir que o cancelamento constrange, ainda que conteúdos abjetos em obras literárias sempre possam ser deplorados.

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Biografia do Autor

Luis Maffei, Universidade Federal Fluminense (UFF)

Professor de Literatura Portuguesa da Universidade Federal Fluminense (UFF), bolsista em produtividade do CNPq e líder do Grupo de Pesquisa “Pensar Camões”. Organizou, com Paulo Braz, edição de Os Lusíadas, anotada, que conta com dez ensaios, um sobre cada Canto do poema, escritos por pesquisadore(a)s brasileiro(a)s. Publicou, entre outros livros, Coisas que juntas se acham – com Camões (2025, Oficina Raquel), além de diversos ensaios em coletâneas e revistas. Finalizou, em 2024, doutorado em Comunicação e Cultura (ECO/ UFRJ), apresentando a tese A sociedade do smartphone – ume leitura da digitalização do mundo, de onde vem parte da reflexão teórica que sustenta este ensaio.

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Publicado

2025-07-07

Como Citar

Maffei, L. (2025). A sociedade do cancelamento ou a literatura como o incancelável. Convergência Lusíada, 36(54), 19–39. https://doi.org/10.37508/rcl.2025.n54a1375